05 outubro 2008

O Ponto de Mutação e o desafio de uma nova visão


Se as portas da percepção se abrissem, tudo pareceria como é

William Blake

“Chassez le naturel, il revient au gallop”

Ditado em latim

A crise ecológica pela qual passa o homem tornou-se o epicentro de vários discursos, desde os doutos acadêmicos até as mesas de bares no boteco da esquina. Vale salientar que a preocupação do homem em relação ao mundo a sua volta no sentido ecológico é algo bem recente. E analisando mais a fundo podemos perceber que existem muitos discursos, porém pouca ação em torno de “ecoatitudes”¹. O filme ponto de mutação, baseado nas idéias holísticas de Fritjof Capra, ilustra muito bem o choque entre pensamento ecológico e o capitalismo neo-liberal construído pelo “Homo-economicus”².

O filme tenta retratar um atrito entre diferentes pontos de vista: Um político frustrado, Jack Edwards (Sam Waterston), que não se conforma com sua derrota e com o ponto de vista de seu eleitorado; Thomas Harrimann (John Heard), um poeta em crise de existência e uma bela cientista, Sonia Hoffmann (Liv Ullman), decepcionada com os rumos da ciência e com a visão antropocêntrica e autoritária do homem contemporâneo.

A crítica do filme é dirigida principalmente às consolidações epistêmicas da ciência nos últimos séculos. Na crítica estão envolvidos tanto o Racionalismo de René Descartes e o empirismo de Francis Bacon, devido à fundamentação que este aplicou a ciência. Porém vale a pena salientar, que a posição do homem como centro do Universo foi construída a partir da Filosofia clássica, com filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles.

No método cartesiano, o ser pensante (o homem) é o sujeito, enquanto o restante do cosmos é um mero objeto, o mundo só tem sentido enquanto analisado pelo método cartesiano, onde o homem tem de dividir o problema para se torna cada vez mais compreensível. Para o empirista Francis Bacon, a natureza é passiva, o homem tem o poder de dominá-la e dela extrair tudo, ou usando a metáfora que o próprio Capra utilizou, a natureza é semelhante a mulher, a qual o homem se acha superior e pensa ter o direito de maltratá-la, isso na sociedade em que os moldes patriarcais ainda possuem raízes.

A ciência embasada nestes moldes formulou algumas idéias maravilhosas, criou tecnologias espantosas e aumentou e muito a comodidade do homem. Todos estes avanços encheram de profundos (e porque não arrogantes) entusiasmos que fizeram com que cientistas e filósofos aplicassem tais métodos incessantemente em todos os campos do conhecimento humano. O progresso fez a cabeça do homem e este viu em sua razão uma forma de salvação para todas as dificuldades.

Porém o século XX veio e com ele várias crises epistemológicas, éticas, ecológicas, sociais, etc. A ciência depois de teorias como a Relatividade de Einstein, o indeterminismo e a improbabilidade da mecânica quântica, a imprevisibilidade e a aleatoriedade da teoria do caos, fizeram com que o homem se surpreendesse com as reviravoltas científicas. Outro “mito” que caiu foi o de que a ciência era neutra e imparcial; muitas das pesquisas no âmbito científico são patrocinadas por interesses bélicos e as que não são muitas vezes são revestidas para este fim. Um exemplo se dá com a cientista no filme, o laser que desenvolverá para fins medicinais acabou se tornando uma arma do governo dos Estados Unidos do projeto Guerra nas Estrelas.

Principalmente na metade do século XX, teorias reformuladas a partir da física quântica começaram a questionar as posições levantadas por Descartes, Newton e companhia. Segundo estes novos pensadores, o homem não é um ser superior que pode agir como bem em entender em relação a seu mundo e sim faz parte de um processo onde tudo está interligado, ilustrarei tal idéia dando um exemplo: Se o homem mata todos os sapos de um determinado ecossitema, consecutivamente, o número de mosquito irá aumentar devido à falta de predadores, esses mosquitos poderão picar mais pessoas e estas por sua vez poderão adoecer ou até morrer, com isso deixaram de ter determinado papel na sociedade e assim por diante. Em outras palavras o cosmos está interligado por conexões ocultas (pode até parecer esotérico, mas é científico) onde cada singularidade desempenha um papel interligado a n possibilidades e que pode resultar y.n² de diferenças.

Podemos destacar centenas de intelectuais trabalhando nestas teorias, aqui serão destacados alguns e uma breve síntese da inovação deles no campo teórico:

· James Lovelock: Desenvolveu a teoria Gaia, onde concebe a terra como um gigantesco sistema vivo, que regula as condições de vida em seu interior. Crítico impiedoso do antropomorfismo, até hoje o biólogo luta para que o homem tenha a percepção de que se não mudar sua atitude, o fim da espécie será eminente.

· Carl Gustav Jung: Aplicou a teoria de que o homem faz parte de uma dimensão coletiva em seu método psicoterapêutico, O ser humano possui um inconsciente coletivo em que estão arquétipos universais presentes em todas as culturas;

· Félix Guattari: Criador da Ecosofia, uma nova ética onde a preocupação ecológica que visa desconstruir o racionalismo tão freqüente nos diversos campos de estudos do homem. Para Guattari a ética tem de adquirir que se tornar uma ecosofia, onde tem de ser estimulados os fatores ambientais, sociais e subjetivos.

· Fritjof Capra:Elaborou uma nova ética, a partir de conceitos e teoria advindos da física quântica. É considerado um dos maiores expoentes na teoria sistêmica e em muitos de seus livros faz associações polêmicas, é o caso de Tal da Física – onde o autor faz um paralelo entre misticismo oriental a as teorias dos quantas.

O filme termina com uma conscientização do político pragmático em relação à nova teoria elaborada pela cientista. Uma nova teoria onde não só o mercado pode ser levado em conta e sim o ecossistema, ou seja, o homem e seu mundo sobre o prisma das relações e das conexões. Porém o que mais marca é a posição do poeta em relação às diversas teorias que visam explicar o mundo:

O que uma lagosta tece lá embaixo com seus pés dourados?
Respondo que o oceano sabe.
Por quem a medusa espera em sua veste transparente?
Está esperando pelo tempo, como tu.
Quem as algas apertam em teus braços?, perguntas mais firme que uma hora e um mar certos?
Eu sei perguntas sobre a presa branca do narval e eu respondo contando como o unicórnio do mar, arpado, morre.
Perguntas sobre as plumas do rei-pescador que vibram nas puras primaveras dos mares do sul.
Quero te contar que o oceano sabe isto: que a vida, em seus estojos de jóias, é infinita como a areia incontável, pura; e o tempo, entre uvas cor de sangue tornou a pedra lisa encheu a água-viva de luz, desfez o seu nó, soltou seus fios musicais de uma cornicópia feita de infinita madrepérola.
Sou só uma rede vazia diante dos olhos humanos na escuridão e de dedos habituados à longitude do tímido globo de uma laranja. Caminho como tu, investigando as estrelas sem fim e em minha rede, durante a noite, acordo nu. A única coisa capturada é um peixe dentro do vento.

PABLO NERUDA

Com este poema, Capra personifica no poeta a concepção de que por mais que o homem tente elaborar teorias mirabolantes e complexas nunca irá explicar o mundo em sua totalidade ou chegar a uma verdade, o que se pode é viver e a partir disto gozar de sua plenitude contemplativa.

A idéia do filme em interligar vários ramos do conhecimento a partir de uma nova visão científica, filosófica com a poesia, torna-se realmente uma ousadia para o âmbito acadêmico, o que até hoje faz com que Capra seja criticado entre os físicos mais tradicionalistas. Os signos personificados no filme mostram um triunfo desta nova percepção em relação ao pragmatismo e o racionalismo finalístico, com um fim positivo, pois Jack se convence da importância de uma nova visão perante o mundo. Porém escapando um pouco do fictício, como o homem pode aplicar essa teoria e fazer com que a grande maioria das pessoas concebam que o antropocentrismo é extremamente nocivo ao planeta?

Realmente a visão não é nada otimista, em seu último livro (A vingança de Gaia), James Lovelock faz uma previsão nada otimista do que o futuro nosso nos aguarda, acredita ele que em torno de um século, cerca de oitenta por cento da população humana será extinta, isso porque o homem ainda confia que tratados como o de Kyoto irão salvar o planeta. O Biólogo neste livro enfatiza com convicção que o planeta irá nos exterminar até pararmos de alterar sua estrutura e contra isso nenhuma tecnologia terá uma eficácia significativa.

O risco é eminente, por isso o desafio de uma nova mudança é urgente. Contudo uma mudança tão drástica de paradigma como enfatiza James Lovelock, iria frear a economia mundial. Acredito que está ai o maior empecilho que obstrui o homem a esta nova visão, a ganância pelo lucro e a obsessão pelo progresso descomedido.

A solução seria uma nova educação para a humanidade, para isso seria necessário consenso geral, o que levaria muito tempo, pois como a história mostra não se faz rupturas da maneira de pensar do dia para noite e sim de décadas ou até mesmo séculos. Contudo não sabemos se a Terra agüentará tanto tempo. De certo acredito que à medida que as catástrofes ambientais se tornarem freqüentes inexoravelmente o homem terá de mudar sua perspectiva e sua forma de lidar com o mundo.

Não quero apresentar aqui discursos untados pelo messianismo, mas acredito que cada pessoa tem uma parcela de responsabilidade perante o mundo que vive, e com isso as pessoas conscientes do trágico fim que se aponta no horizonte, devem fazer de tudo para que pontos de vistas ecológicos cada vez mais ocupem territórios. Tem de haver uma metástase pró-ecologia, onde cada um tem de fazer sua parte e tentar contaminar os outros e quem sabe assim, poderemos clarear um pouco o futuro sombrio que nos espera.


FELIPE CAMARGO


1-Atitudes que visam à sustentação ecológica, uma ação ambiental digna de preservação.

2- Homo economicus é um termo utilizado pelo filósofo e sociólogo Jean Baudrillard, que afirma que o homem hoje vive em um sistema de economia virtual.

Nenhum comentário: