16 junho 2008

21 de Abril de 2128*

“Desenvolver-se não significa forçosamente elevar-se, aperfeiçoar-se, fortalecer-se.”

F. Nietzsche

Sou um dos poucos que ainda perpetuam a raça humana, uma espécie que acreditou cegamente dominar a natureza, e tal crença quase a extinguiu do planeta. Segundo os poucos registros que sobraram, tal população chegou à casa dos sete bilhões, porém com os freqüentes desastres que aconteceram neste último século, a estimativa gira em torno de quinhentos milhões de habitantes.

É até difícil de imaginar que o planeta Terra há cerca de cento e vinte anos atrás vivia seu auge tecnológico, apesar da maioria da população ficar excluída deste luxo. Neste período, o homem gozava do posto de dominador da natureza e acreditava cegamente na neutralidade do progresso, o que levou a condenação da biodiversidade terrestre.

Podemos comparar a situação humana com o mito de Pandora, onde o mau comportamento humano com os deuses (no caso Gaia, a deusa Terra na mitologia grega) nos traz inumeráveis tragédias. No mito grego, Pandora é a primeira mulher criada por Zeus e devido a sua curiosidade abre a caixa portadora de todos os males, isso faz com que o mundo seja tomado por desgraças. Tristemente sou testemunha de que tal narração parece ter sido concretizada, e todos os infortúnios possíveis (inclusive a falta de esperança) saíram da caixa e se alojaram no mundo. Hoje minha geração colhe os resultados da tirania de nossos antepassados diante da natureza.

No último século a temperatura da Terra aumentou cerca de seis Graus Celsius, tanto espécies de vegetais como de animais foram extintas e a maioria dos lugares que eram habitados por bilhões de seres humanos hoje está inabitável. As cidades nas costas litorâneas foram cobertas por água e florestas entraram em processo de desertificação. Os alimentos ficaram escassos, as guerras apareceram e a humanidade encolheu. Hoje somos uma população condenada que luta desesperadamente por comida, água potável e outras necessidades essenciais que em outras épocas eram desperdiçadas abundantemente.

Sinto-me como uma vítima de toda destemperança antropocêntrica que fez com que boa parte dos homens consumissem sem nenhuma responsabilidade e compromisso com os demais seres vivos de nosso planeta.

É triste pensar que para ostentar o progresso descomedido de uma minoria, bilhões de pessoas pagaram. Tudo em nome de um padrão de vida elevado que depositava erroneamente todas as esperanças nas tecnologias humanas. Porém, com o tempo vimos que diante das forças da natureza tais tecnologias foram insuficientes, e a extinção de grande parte do ecossistema se tornou um perigo eminente.

Às vezes fico imaginando como o mundo outrora podia ser tão habitável e gostoso para se viver. Porém diante da catastrófica realidade, que se compara a tão temida barbárie, vejo que este passado parece tão longínquo e fantasioso quanto à saga que Tolkien criou.

É triste ter que pensar que habitamos um mundo onde grande parte da população um dia teve uma condição tolerável de vida, onde não era preciso comer carne humana, o que se tornou um hábito freqüente devido a grande escassez e ao aglomerado da população nas poucas áreas habitáveis que sobraram em nosso “moribundo” planeta.

O ser humano foi caracterizado como o único ser racional existente e chega a ser contraditório imaginar que o dono de tal status, o único portador de uma consciência racional destruiu seu habitat, tudo devido a uma obsessão de progresso que o cegou diante de si e do mundo.

Gostaria de poder enviar esta carta ao passado e implorar aos homens que agissem com responsabilidade ética, pois creio que este era o único caminho. Se há duzentos anos atrás o homem mudasse seu olhar mecânico e neutro diante do mundo e pensasse mais no bem de nosso ecossistema do que em um progresso falho e apocalíptico, não estaríamos na calamidade que nos encontramos. Pois no mundo hoje o sofrimento é tão normal, que faz você indagar se a dolorosa vida vale a pena ser vívida.

J.L.

*Esta carta é fictícia, porém se não agirmos com responsabilidade e reflexão ética, ela poderá ser escrita por um descendente seu, e assim se tornar assustadoramente real.

2 comentários:

T. Albuquerque disse...

Essa carta me lembra absurdamente do livro "Admirável Mundo Novo". Todo o conteúdo reflexivo.

Rogério Saldanha disse...

Bastante pertinente o comentário.Quanto aos clássicos citados alhures, são mensagens que demonstram a profundidade cognoscitiva, pungente e estética na qual os autores vislubraram o labirinto da mente humana em um fiasco psicologico e excentrico visionarismo, respectivamente em Camus e Aldous Huxlei. Exatamente por essa razão perpetuam-se como leitura obrigatória no ãmbito do estudo das humanidades.